quarta-feira, 30 de julho de 2008

João Pereira Coutinho - Jornal Expresso

Água engarrafada

Perguntam-me às vezes qual a principal diferença entre o norte e o sul, entre o Porto e Lisboa. Tenho a vantagem, ou a desvantagem, de viver entre ambas. E respondo sempre uma evidência: água engarrafada. O meu interlocutor não entende a resposta e pede explicações. Eu bocejo, deito-me no sofá, desaperto ligeiramente o cinto que oprime a barriga e começo uma longa prelecção sobre a diferença antropológica entre as duas principais cidades portuguesas sob a perspectiva da água engarrafada. Tudo se resume a experiência pessoal: eu, em casa de amigos lisboetas, solicitando um copo de água para matar a sede. E eles, com a naturalidade típica do sul, abrem a torneira e enchem o copo.

No Porto, este gesto - abrir a torneira e encher o copo para o convidado - seria o suficiente para lançar duas famílias em guerra. Quando um homem do norte pede um copo de água, ele sabe que existe uma diferença entre água da torneira (que serve para cozinhar, tomar banho e alimentar os cães) e água engarrafada (exclusivamente para seres humanos).

Não sei como começou esta profunda divisão; mas um livro recente, escrito por Elizabeth Royte e analisado na última "Economist", talvez dê uma ajuda. Intitula-se, apropriadamente, Bottlemania: How Water Went on Sale and Why We Bought It. Para a autora, uma mistura de snobeira, necessidade e preocupações higiénicas transformou uma indústria inexistente, ou incipiente, num império de lucros florescentes. Depois, e só depois, o capitalismo fez o resto: ainda que a água corrente seja hoje tão bebível como a engarrafada, vender garrafas é mais rentável. Para sermos exactos, uma indústria de 4 mil milhões de dólares em 1997 passou para os 10,8 mil milhões em 2006.

Quando conto esta história aos meus amigos lisboetas, eles dizem que água engarrafada é típica de zonas subdesenvolvidas. Talvez seja. Ou talvez não seja: talvez a preferência pela garrafa seja mais uma confirmação de que o colectivismo do sul não pega no norte burguês e individualista.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Clara F. Alves



Portugal tem um défice de responsabilidade civil, criminal e moral muito
maior do que o seu défice financeiro, e nenhum português se preocupa com
isso apesar de pagar os custos da morosidade, do secretismo, do
encobrimento, do compadrio e da corrupção. Os portugueses, na sua infinita e
pacata desordem existencial, acham tudo 'normal' e encolhem os ombros.

Por uma vez gostava que em Portugal alguma coisa tivesse um fim, ponto
final, assunto arrumado. Não se fala mais nisso. Vivemos no país mais
inconclusivo do mundo, em permanente agitação sobre tudo e sem concluir
nada.

Desde os Templários e as obras de Santa Engrácia, que se sabe que nada acaba
em Portugal, nada é levado às últimas consequências, nada é definitivo e
tudo é improvisado, temporário, desenrascado.

Da morte de Francisco Sá Carneiro e do eterno mistério que a rodeia, foi
crime, não foi crime, ao desaparecimento de Madeleine McCann ou ao caso Casa
Pia, sabemos de antemão que nunca saberemos o fim destas histórias, nem o
que verdadeiramente se passou nem quem são os criminosos ou quantos crimes
houve.

Tudo a que temos direito são informações caídas a conta-gotas, pedaços do
enigma, peças do quebra-cabeças. E habituámo-nos a prescindir de apurar a
verdade porque intimamente achamos que não saber o final da história é uma
coisa normal em Portugal e que este é um país onde as coisas importantes são
'abafadas', como se vivêssemos ainda em ditadura.

E os novos códigos Penal e de Processo Penal em nada vão mudar este estado
de coisas. Apesar dos jornais e das televisões, dos blogues, dos
computadores e da Internet, apesar de termos acesso em tempo real ao maior
número de notícias de sempre, continuamos sem saber nada, e esperando nunca
vir a saber com toda a naturalidade.


Do caso Portucale à Operação Furacão, da compra dos submarinos às escutas ao
primeiro-ministro, do caso da Universidade Independente ao caso da
Universidade Moderna, do Futebol Clube do Porto ao Sport Lisboa Benfica, da
corrupção dos árbitros à corrupção dos autarcas, de Fátima Felgueiras a
Isaltino Morais, da Braga parques ao grande empresário Bibi, das queixas
tardias de Catalina Pestana às de João Cravinho, há por aí alguém que
acredite que algum destes secretos arquivos e seus possíveis e alegados,
muito alegados crimes, acabem por ser investigados, julgados e devidamente
punidos?

Vale e Azevedo pagou por todos.
Quem se lembra dos doentes infectados por acidente e negligência de Leonor
Beleza com o vírus da sida?

Quem se lembra do miúdo electrocutado no semáforo e do outro afogado num
parque aquático?

Quem se lembra das crianças assassinadas na Madeira e do mistério dos crimes
imputados ao padre Frederico?Quem se lembra que um dos raros condenados em
Portugal, o mesmo padre Frederico, acabou a passear no Calçadão de
Copacabana?

Quem se lembra do autarca alentejano queimado no seu carro e cuja cabeça foi
roubada do Instituto de Medicina Legal?


Em todos estes casos, e muitos outros, menos falados e tão sombrios e
enrodilhados como estes, a verdade a que tivemos direito foi nenhuma.

No caso McCann, cujos desenvolvimentos vão do escabroso ao incrível, alguém
acredita que se venha a descobrir o corpo da criança ou a condenar alguém?
As últimas notícias dizem que Gerry McCann não seria pai biológico da
criança, contribuindo para a confusão desta investigação em que a Polícia
espalha rumores e indícios que não têm substância.

E a miúda desaparecida em Figueira? O que lhe aconteceu?

E todas as crianças desaparecida antes delas, quem as procurou?

E o processo do Parque, onde tantos clientes buscavam prostitutos, alguns
menores, onde tanta gente 'importante' estava envolvida, o que aconteceu?
Arranjou-se um bode expiatório, foi o que aconteceu.

E as famosas fotografias de Teresa Costa Macedo? Aquelas em que ela
reconheceu imensa gente 'importante', jogadores de futebol, milionários,
políticos, onde estão? Foram destruídas? Quem as destruiu e porquê?

E os crimes de evasão fiscal de Artur Albarran mais os negócios escuros do
grupo Carlyle do senhor Carlucci em Portugal, onde é que isso pára? O mesmo
grupo Carlyle onde labora o ex-ministro Martins da Cruz, apeado por causa de
um pequeno crime sem importância, o da cunha para a sua filha.

E aquele médico do Hospital de Santa Maria suspeito de ter assassinado
doentes por negligência? Exerce medicina?

E os que sobram e todos os dias vão praticando os seus crimes de colarinho
branco sabendo que a justiça portuguesa não é apenas cega, é surda, muda,
coxa e marreca.

Passado o prazo da intriga e do sensacionalismo, todos estes casos são
arquivados nas gavetas das nossas consciências e condenados ao esquecimento.
Ninguém quer saber a verdade. Ou, pelo menos, tentar saber a verdade.

Nunca saberemos a verdade sobre o caso Casa Pia, nem saberemos quem eram as
redes e os 'senhores importantes' que abusaram, abusam e abusarão de
crianças em Portugal, sejam rapazes ou raparigas, visto que os abusos sobre
meninas ficaram sempre na sombra.

Existe em Portugal uma camada subterrânea de segredos e injustiças, de
protecções e lavagens, de corporações e famílias, de eminências e
reputações, de dinheiros e negociações que impede a escavação da verdade.
Este é o maior fracasso da democracia portuguesa

segunda-feira, 21 de julho de 2008

PROVA INFALÍVEL PARA O SUCESSO ESCOLAR

Philippine Madrigal Singers - Pamúgun

LIMPEZA ÉTNICA - Jornal de Notícias

O homem, jovem, movimentava-se num desespero agitado entre um grupo de mulheres vestidas de negro que pululavam lamentos. "Perdi tudo!" "O que é que perdeu?" perguntou-lhe um repórter.

"Entraram-me em casa, espatifaram tudo. Levaram o plasma, o DVD a aparelhagem..." Esta foi uma das esclarecedoras declarações dos autodesalojados da Quinta da Fonte. A imagem do absurdo em que a assistência social se tornou em Portugal fica clara quando é complementada com as informações do presidente da Câmara de Loures: uma elevadíssima percentagem da população do bairro recebe rendimento de inserção social e paga "quatro ou cinco euros de renda mensal" pelas habitações camarárias. Dias depois, noutra reportagem outro jovem adulto mostrava a sua casa vandalizada, apontando a sala de onde tinham levado a TV e os DVD. A seguir, transtornadíssimo, ia ao que tinha sido o quarto dos filhos dizendo que "até a TV e a playstation das crianças" lhe tinham roubado. Neste país, tão cheio de dificuldades para quem tem rendimentos declarados, dinheiro público não pode continuar a ser desviado para sustentar predadores profissionais dos fundos constituídos em boa fé para atender a situações excepcionais de carência. A culpa não é só de quem usufrui desses dinheiros. A principal responsabilidade destes desvios cai sobre os oportunismos políticos que à custa destas bizarras benesses, compraram votos de Norte a Sul. É inexplicável num país de economias domésticas esfrangalhadas por uma Euribor com freio nos dentes que há famílias que pagam "quatro ou cinco Euros de renda" à câmara de Loures e no fim do mês recebem o rendimento social de inserção que, se habilmente requerido por um grupo familiar de cinco ou seis pessoas, atinge quantias muito acima do ordenado mínimo. É inaceitável que estes beneficiários de tudo e mais alguma coisa ainda querem que os seus T2 e T3 a "quatro ou cinco euros mensais" lhes sejam dados em zonas "onde não haja pretos". Não é o sistema em Portugal que marginaliza comunidades. O sistema é que se tem vindo a alhear da realidade e da decência e agora é confrontado por elas em plena rua com manifestações de índole intoleravelmente racista e saraivadas de balas de grande calibre disparadas com impunidade. O país inteiro viu uma dezena de homens armados a fazer fogo na via pública. Não foram detidos embora sejam facilmente identificáveis. Pelo contrário. Do silêncio cúmplice do grupo de marginais sai eloquente uma mensagem de ameaça de contorno criminoso - "ou nos dão uma zona etnicamente limpa ou matamos." A resposta do Estado veio numa patética distribuição de flores a cabecilhas de gangs de traficantes e autodenominados representantes comunitários, entre os sorrisos da resignação embaraçada dos responsáveis autárquicos e do governo civil. Cá fora, no terreno, o único elemento que ainda nos separa da barbárie e da anarquia mantém na Quinta da Fonte uma guarda de 24 horas por dia com metralhadoras e coletes à prova de bala. Provavelmente, enquanto arriscam a vida neste parque temático de incongruências socio-políticas, os defensores do que nos resta de ordem pensam que ganham menos que um desses agregados familiares de profissionais da extorsão e que o ordenado da PSP deste mês de Julho se vai ressentir outra vez da subida da Euribor.